Em 2012 estive internado numa clínica de recuperação de dependentes químicos. Foram vários meses. Quando saí, percebi que várias versões sobre minha ausência tinha circulado. Resolvi assumir e contar tudo. Assim, a revista Maxxi´s me procurou e dei o depoimento abaixo, que também foi divulgado nas redes sociais. Sem mentiras, Sem vergonha. Espero ter saciado a curiosidade e ajuda alguém...
Não importa onde eu parei, em que momento da vida eu me cansei. O que importa é que sempre é possível e necessário recomeçar. Dar uma nova chance a mim mesmo. Renovar as esperanças na vida e, o mais importante, voltar a acreditar em mim.
Se sofri, foi aprendizado. Se chorei , foi limpeza da alma. Se fiquei com raiva, foi para perdoar. Se provoquei raiva, foi para aprender a corrigir os erros. Se senti-me só por diversas vezes, foi porque fechei as portas para os outros. Mas, quando acreditei que tudo estava perdido, foi o início da minha melhora, porque então senti que precisava renascer.
Me recordo que, na sessão de terapia em grupo, internado numa clínica de recuperação, há alguns meses, todos nós, internos, precisávamos contar sobre nossas vidas e o envolvimento com as drogas. Cada um tinha uma história que “justificava” esse vício. Famílias desestruturadas, desilusão amorosa, envolvimento com o crime, doença, etc. Quando chegou minha vez de falar, senti vergonha... Eu não tinha nenhuma tragédia em minha vida para que eu pudesse usar como “justificativa” para me sentir vítima do sistema e “jogar a culpa” dessa viagem pelo mundo das drogas.
Minha história começa como um conto de fadas: o rapaz do interior que aos 25 anos já era diretor de criação de uma das maiores agências de Publicidade de São Paulo, criando anúncios para a Ford Brasil, Nestlé e outros. Tive a sorte de casar-me com a mulher que amo, uma brilhante psicóloga. Procurando uma vida mais calma, optamos em retornamos para Catanduva, nossa terra. Aqui fui diretor da Antena Um FM e da TV O. Fui dono das revistas Multi e Mais e do Jornal Dia D. Fui colunista nos principais veículos de comunicação, apresentador de TV. Minha vida familiar se completou com duas filhas lindas e amorosas, uma cursando hoje o 9º ano, excelente aluna e cheia de planos e a outra cursando o 1º ano de faculdade de medicina. Sou o único filho homem de uma família de cinco filhos. Amado pela mãe e pelas irmãs.
Na adolescência meu único vício era o cigarro. Não gostava de cerveja. Odiava o cheiro da pinga. Descartava qualquer bebida alcóolica. Minha única experiência com as drogas foi com a maconha, aos 20 anos. Experimentei e não gostei. Parei por aí. Estava absolutamente certo e confiante que jamais percorreria a estrada do vício e da dependência. Isso era coisa de gente fraca. Eu era dono do meu destino e isso não aconteceria comigo.
Mas minha vida começou a mudar aos 35 anos de idade. No auge da carreira. Um profissional de sucesso. Badalado. Paparicado. Cercado de amigos e pessoas diversas. Festas, inaugurações, gravações...
Foi então que fui apresentado a ela... Me apaixonei.
Durante 10 anos tivemos um relacionamento perfeito. Nos curtíamos sem alardes, sem despertar comentários. Nos encontrávamos nos fins de noite, nos finais das festas. Às vezes ficávamos semanas sem nos ver. Mas quando nos encontrávamos novamente era aquela explosão de alegria. Quando me dei conta não podia viver sem ela. A cocaína!
Nos últimos cinco anos nosso convívio foi intenso, diário. Chegou um momento em que cheirava dias e dias seguidos. Não tinha sono? Tomava um sonífero. Não tinha fome? Disfarçava remexendo a comida no prato e inventando desculpas. O importante é que com ela sentia-me vivo. Inteligente. Brilhante. Descolado. Cheio de amigos. A noite não tinha fim. Pouco importava a esposa e as filhas em casa, noites e noites sozinhas. Eu sempre tinha uma desculpa. Aos poucos deixei de ler os meus amados livros. Parei de ver televisão, uma grande paixão. Os amigos antigos e os parentes? Só encontrava ocasionalmente. As finanças começaram a despencar. Meus projetos profissionais naufragavam. Os empregos, geralmente bons, eu desperdiçava. A credibilidade profissional e pessoal indo pelos ares. Fui perdendo casa, apartamento, empresa, terrenos, dignidade.
Aí começaram os comentários. Eu não percebia nada de início. Mas a família já começava a sentir... O meu humor oscilante. A insônia. Os tiques nervosos. Eu não me contentava apenas em usar a droga nas noitadas com os amigos. Antes de ir para casa comprava mais. Pensava: é para amanhã. Que nada. Chegando em casa esperava ter a certeza de que todos dormiam e então decidia dar mais uma cheiradinha antes de ir pra cama. Depois outra. Aí pensava “vou acabar logo com isso assim posso dormir tranquilo”. E cheirava tudo que tinha levado. E não conseguia dormir.
Lembro-me que uma noite coloquei embaixo da estante da sala, sob a capa de um cd, as carreirinhas de cocaína e um papel enrolado em forma de canudo. Após cada cheirada eu ia fumar na frente de casa. Ao retornar para a sala percebi que o canudo estava aberto. No papel estava escrito: “pai, se não for por você, que seja por quem te ama. Pare com isso antes que seja tarde”. Uma das minhas filhas não estava dormindo. E enquanto eu fumava ela escreveu este recado. Fiquei arrasado. Envergonhado. O que fazer? Peguei mais três pinos de cocaína que tinha guardado e cheirei todos de uma vez. Era a única forma de esquecer o que tinha lido...
Enquanto o uso da droga aumentava, o dinheiro acabava. Não pensava eu mais nada. Absolutamente nada. Acordava pensando em como conseguiria dinheiro para comprar mais pó para aquele dia. Não existia mais o dia seguinte. Pedia emprestado a família, inventando as desculpas mais esdrúxulas. Fazia negócios e recebia adiantado por trabalhos que nunca realizava. Mas a vida ainda continuava uma festa. Até que percebi que algo estava estranho. Sentia em meus confusos pensamentos que as pessoas começavam a compactuar um plano mirabolante para acabarem comigo. Eu ouvia vozes. Cheirava e me sintonizava com um mundo diferente, onde era possível eu ouvir conversas à distância. Ouvia tudo o que as pessoas falavam sobre mim. Era uma loucura real ou uma real loucura? Não sabia. O que tinha certeza é de que eu detinha algum poder estranho que ameaçava as pessoas e todas estavam contra mim. Um complô digno de um grande líder mundial.
Eu não acreditava em mais ninguém. Nem em mim mesmo. Achava que tinha escutas e câmeras ocultas em todos os lugares. Achava que as pessoas falavam por códigos. Tudo oque me diziam eu, depois, ficava horas e horas tentando decifrar as frases, trocando letras e invertendo palavras para chegar a uma descoberta. Nunca conseguia. Mas tinha a certeza absoluta de que havia outro mundo paralelo e que não me aceitavam nele. Sofria. E eu queria ser aceito e me revoltava sentir que não confiavam em mim o suficiente para me aceitarem. Eu brigava com todo mundo. Nenhuma amizade resistia a minha psicose provocada pela droga. Aliás, nessa época eu já comecei a experimentar craque, misturado a maconha. Uma combinação chamada de “mesclado”. Mas minha preferência era e sempre foi a cocaína. Aquelas carreirinhas brancas que, ao serem inaladas, abriam imediatamente meu celebro para novas sensações.
Droga não é o mal. A droga é um composto químico. O problema começa quando pessoas tomam drogas como se fosse uma licença para poderem agir como babacas. E eu havia me transformado num perfeito “banana”. Com medo. Muito medo de tudo! Comecei a frequentar os botecos mais distantes possíveis, alguns até em cidades da região, para não ser reconhecido. Logo achava que lá já existia um complô contra mim, e mudava novamente de lugar. O dia nunca chegava. Era uma noite sem fim. Uma escuridão. Vozes e vozes no meu ouvido. Os sons em volume altíssimo vindo dos mais diferentes lugares. Um ronco de motor de carro à distância era motivo para eu me alarmar e correr me esconder. Quando não tinha cocaína corria para uma “farmácia” que tinha numa gaveta do armário e pegava qualquer tipo de remédio em comprimidos e esfarelava para poder cheirar. O nariz não parava de arder. A coriza constante. O gosto amargo na boca durante as 24 horas do dia. E bebida, muito bebida para que as drogas ficassem mais potente. Bebia tudo. Pinga, cerveja, whisky, vodca, licor, perfume... Tudo que tivesse álcool.
Ninguém mais fazia parte da minha vida. Eu vivia um universo particular, cercado da companhia de figuras que minha mente criava e que eu jurava serem verdadeiras. E a cada vez que eu usava droga, buscava desesperadamente aquela sensação que sentia anos atrás, quando comecei a usá-las. Mas não conseguia. Era preciso mais e mais e mais.
Minha vida ficou sem sentido, tentei me matar algumas vezes, meus “amigos” me agrediam em brigas sem sentido. Sim, porque quando acaba a sua droga e o dinheiro que você tinha no bolso, os amigos “vazam”. Aqueles que te abraçavam, voltam-se contra você. Mas não mudei pela dor. Mudei pelo amor. E quem me tirou dessa escuridão foi minha família. Aquela para qual eu havia mentido, lesado e desprezado.
Chegou um dia em que eu não tinha mais nem força física para dizer “não”. E assim, forçadamente pacífico, drogado, com o corpo todo machucado pelas surras que havia tomado na rua, eu olhei para minha esposa e minhas irmãs e disse: “estou cansado. Me ajudem”. E, pela primeira vez, senti realmente o amor. Elas não me julgaram. Não me criticaram. Não jogaram na cara tudo o que eu havia aprontado. Elas simplesmente me envolveram num círculo de amor e carinho. Estenderam suas mãos não me deixando cair ainda mais. E assim fui internado numa clínica de recuperação de pendentes químicos, onde fiquei por cerca de 5 meses.
De repente me vi fechado com outros 75 homens. De todo tipo, de todas as idades, das mais diferentes classes sociais e culturais, mas todos com um ponto em comum: vontade de recomeçar a vida. Foi difícil, muito difícil, me adaptar. Me impor. Não ceder aos mais fortes. É como se fosse a lei da uma prisão. Mas consegui. Em nenhum momento deixei de ser eu mesmo, nem abaixei a cabeça. Desde o início me ensinaram lá que pare ter coragem de aceitar uma internação longa, sem nenhum contato com familiares e amigos, é preciso ser “muito macho”. Saber que as pessoas que amo estavam sentindo orgulho de minha força de vontade, me deixava mais forte. Saber que algumas outras pessoas duvidavam que eu conseguiria ir até o fim do tratamento, me desafiava a seguir em frente. Lá eu senti dor, chorei, briguei, mas aos poucos comecei a sorrir, a sentir bem estar, alegria, companheirismo.
Lá me levantava por volta das 5 da manhã. Recebia medicamentos, tratamento psicológico e clínica, terapias e trabalho. Muito trabalho. Fiz coisas que nunca tinha feito. Lavei roupas, lavei banheiros, rastelei bosques imensos, fiquei com as mãos machucadas pelos cabos de enxadas nas roças. Horários rígidos. Disciplina. Um estilo de vida a que não estava acostumado. Fui aprendendo que tudo na vida tem sua hora. Que existem regras em cada ação no nosso dia a dia. Fui aprendendo o que é compromisso e responsabilidade e fui me limpando das drogas. Comecei a sentir os cheiros, o paladar. E descobrindo Deus.
Lá passei momentos difíceis, pois era a forma de me preparar para enfrentar as dificuldades do mundo aqui fora sem procurar cumplicidade nas drogas.
Muitos dos companheiros que começaram o tratamento comigo foram desistindo ao longo do caminho. Dos 36 homens que faziam parte do meu grupo inicial, apenas 10 chegaram ao final do tratamento. Ao longo desse período fui me sentindo orgulhoso de mim mesmo graças, principalmente, ao amor que recebi da minha família, a qual incluo de coração Vani Salles Campos, diretora dessa revista. Quando todos viraram as costas, ela acreditou na minha decisão. No segundo mês de internação ela me procurou e disse: “faça seu tratamento e, quando voltar, seu lugar esta guardado na Maxxi´s”. Saber que eu tinha um emprego ao voltar para casa foi essencial no meu processo de recuperação. E está sendo fundamental nessa caminhada de sobriedade que vivo hoje.
Hoje estou trabalhando, vivendo com minha família e reaprendendo a usufruir a liberdade. Dou os primeiros passos. Como uma criança aprendendo a andar. Porém sabendo quais os caminhos que posso percorrer e quais os que devo desviar. Agora é hora de iniciar, de pensar na luz, de encontrar prazer nas coisas simples de novo. Um novo estilo de cabelo, novos hábitos mais saudáveis ou aquele velho desejo de escrever um livro, dominar o computador, ou qualquer outra coisa? Olha quanto desafio! Quanta coisa nova nesse mundão de meu Deus me esperando. Estou me sentindo sozinho? Besteira! Tem tanta gente que eu afastei com o meu "período de isolamento", tem tanta gente esperando apenas um sorriso meu para "chegar" perto. Quando me tranquei nas drogas nem eu mesmo me suportei. Fiquei horrível. O mau humor vai comendo meu fígado, até a boca ficar amarga. Viver! Hoje é um dia para começar. Novos desafios. Onde quero chegar? Ir alto. Sonhar alto, quero o melhor do melhor, quero coisas boas para a vida. Quero pensamento. Assim trazer para mim aquilo que desejo.
Hoje estou em recuperação, sem álcool, sem droga e sem festas e estar do lado da minha família e trabalhando é o maior presente que eu tenho pois hoje eu tenho amigos de verdade, e não traficantes do meu lado. Tenho pessoas que me amam e torcem por mim e sei que tenho uma doença incurável, progressiva e fatal e que se eu não cuidar posso voltar para onde eu estava e ficar pior ainda. Pois eu não sou diferente do cara que está na rua pedindo esmola para comprar uma garrafa de bebida álcoolica, ou o cara que está fumando crack na rua, a pessoa é diferente mas a doença é a mesma.
Se você tem um amigo ou um parente que usa droga, entenda que é uma doença e, com amor, você pode conseguir conscientizá-lo da importância do tratamento, pois sozinho ninguém consegue sair dessa. São muitas tentações e fraquezas. Não se drogue por não ser capaz de suportar sua própria dor. Eu estive em todos os lugares e só me encontrei em mim mesmo.
Neste espaço aproveito para agradecer minha mãe, minha esposa, minhas irmãs e minhas filhas. Essas mulheres fortes que acreditaram em mim quando ninguém mais acreditava. E, um pedido especial de perdão às pessoas que eu tenha prejudicado e deixado de cumprir as obrigações profissionais, lesando-as de alguma forma. Peço um voto de confiança, pois tudo o que desejo é poder honrar meus compromissos e voltar a andar de cabeça erguida e dormir com a consciência tranquila.
Sei que nada é um conto de fadas e que aquela velha história de ‘viveram felizes para sempre’ ainda tem muito para acontecer . Mas, só por hoje, eu sou feliz!”
Chorei numa noite fria, na clínica, ao cantarmos a música “Um Milagre”: “Nunca houve noite que pudesse impedir o nascer do sol e a esperança, e não há problema que possa impedir as mãos de Jesus prá me ajudar”. Hoje sei que para me manter na sobriedade, devo viver um dia de cada vez. Só por hoje, para que exista o amanhã.
“Eu não entendo um Deus assim, tão louco de amor por mim. Eu não entendo, sou tão fraco. Por que ele me escolheu? E para confundir os fortes gravou meu nome em suas mãos. Deus, você me levantou do chão, enquanto a multidão jogava pedras! Deus, você me perdoou e esse amor eu não esqueço...”.
O mandamento diz: “Amar o próximo como a si mesmo”. Se você conhece alguém perdido no caminho da dependência química ou álcoolica, antes de criticar, procure ajudar. Encaminhe para tratamento. Existem muitas e boas clínicas sem custos. Leve-o a um grupo de apoio. Estenda a mão.
Cair é do Homem. Levantar é de Deus.
José Antonio Jayme – Publicitário e Jornalista